quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Sistema Representativo e o Sufrágio Universal


Escrito por Pierre Joseph Proudhon, originalmente publicado na obra Idée de la Révolution au XIX Siècle em 1851, extraído do livro A Propriedade é um Roubo e outros escritos Anarquistas, lançado por L&PM Editores, 1998.

Não há duas espécies de governo, assim como não há duas espécies de religião. O governo é de inspiração divina ou não é; assim como a religião é do céu ou não é nada. Governo democrático e religião natural são duas contradições, a menos que se prefira ver aí duas mistificações. O povo não tem mais voz consultiva no Estado do que na Igreja: seu papel é obedecer e acreditar.
Deste modo, como os princípios não podem falhar que os homens sozinhos têm o privilégio da inconseqüência, o governo, em Rosseau, assim como na Constituição de 91 e todas as que a seguiram, não é sempre, apesar do sistema eleitoral, senão um governo de direito divino, uma autoridade mística e sobrenatural que se impõe à liberdade e à consciência, mesmo parecendo solicitar sua adesão?
Sigai esta seqüência:
Na família, em que a autoridade está intima ao coração do homem, o governo assenta-se na descendência;
Nos costumes selvagens e bárbaros ele se apóia no patriarcado, o que reaparece na categoria precedente, ou pela força;
Nos costumes sacerdotais ele se apóia na fé;
Nos costumes aristocráticos ele se apóia na progenitura ou na casta;
No sistema de Rosseau, tornado o nosso, ele se apóia ou no acaso ou no número.
A descendência, a força, a fé, a progenitura, o acaso, o número, todas coisas igualmente ininteligíveis e impenetráveis, sobre as quais não há nada a objetar, mas a se submeter, tais são, não diria os princípios – tanto a autoridade quanto a liberdade não reconhecem senão elas mesmas por princípios –, mas os diferentes modos pelos quais se efetiva, nas sociedades humanas, a investidura do poder. A um principio primitivo, superior, anterior, indiscutível, o instinto popular sempre procurou uma expressão que foi igualmente primitiva, superior, anterior e indiscutível. No que concerne à produção do poder, a força, a lei, a hereditariedade e o número são a forma variável que reveste este ordálio; são julgamentos de Deus.
É o número que oferece a vosso espírito alguma coisa de mais racional, de mais autêntico, de mais moral do que a fé ou a força? O escrutínio vos parece mais seguro que a tradição ou a hereditariedade? Rousseau invectiva contra o direito do mais forte, como se a força, antes que o número, constituísse a usurpação. Mas o que é então o número? O que prova? Que vale? Qual a relação entre a opinião mais ou menos unânime e sincera dos votantes a esta coisa que domina qualquer opinião, qualquer voto, a verdade, o direito?
O quê! Trata-se de tudo o que me é mais caro, de minha liberdade, de meu trabalho, da subsistência de minha mulher e de meus filhos; e, quando conto convosco para admitir artigos, devolveis tudo a um congresso formado segundo o capricho do acaso? Quando eu me apresento para contratar, vós me dizeis que é preciso eleger árbitros que, sem me conhecer, sem me ouvir, pronunciarão minha absolvição ou minha condenação? Qual a relação, eu vos suplico, entre este congresso e eu? Que garantia ele pode me oferecer? Por que faria este sacrifício enorme, irreparável à sua autoridade, de aceitar o que lhe agrada resolver como sendo a expressão de minha vontade, a justa medida de meus direitos? E, quando este congresso, após os debates aos quais eu não compreendo nada, vem me impor sua decisão como lei, me apresentar esta lei na ponta de uma baioneta, eu pergunto, se é verdade que eu faço parte do soberano, o que vem a ser minha dignidade, se devo me considerar como estipulante, onde está o contrato?
Os deputados, pretende-se, seriam os homens mais capazes, os mais probos, os mais independentes do país; escolhidos como tais por uma elite de cidadãos mais interessados na ordem, na liberdade, no bem-estar dos trabalhadores e no progresso. Iniciativa sabiamente concebida, que afiança a bondade dos candidatos!
Mas por que então os honorários burgueses componentes da classe média sabem melhor que eu mesmo dos meus verdadeiros interesses? Trata-se de meu trabalho, observais então, da troca de meu trabalho, a coisa que, após o amor, sofre menos a autoridade. (...)
(...) E vós ireis entregar meu trabalho, meu amor, por procuração, sem meu consentimento! Quem me diz que vossos procuradores não usarão de seu privilégio para fazer do poder um instrumento de exploração? Quem me garante que seu pequeno número não os entregará, pés, mãos e consciências amarrados, à corrupção? E, se eles não querem se deixar corromper, se eles não conseguem ser razoáveis à autoridade, quem me assegura que a autoridade desejará se submeter?
(...) A solução está encontrada, bradam os intrépidos. Que todos os cidadãos participem do voto; não haverá poder que lhes resista, nem sedução que os corrompa. É o que pensaram, no dia seguinte a Fevereiro, os fundadores da República.
Alguns acrescentam: que o mandato seja imperativo, o representante perpetuamente revogável; e a integridade da lei estará garantida, a fidelidade do legislador, assegurada.
Nós entramos no atoleiro.
Não acredito de maneira alguma, justificadamente, nesta intuição divinatória da multidão, que a faria discernir, logo de imediato, o mérito e a honorabilidade dos candidatos. Os exemplos são abundantes em personagens eleitos por aclamação e que, sobre as bandeiras em que se ofereciam aos olhos do povo arrebatado, já preparavam a trama de suas traições. Entre dez tratantes, o povo, em seus comícios, quase que não encontra um homem honesto...
Mas que me interessam, ainda uma vez, todas estas eleições? Que necessidade tenho de mandatários, tanto como de representantes? E, já que é preciso que eu determine minha vontade, não posso exprimi-la sem a ajuda de ninguém? Isto me custará mais e, além disso, não estou mais certo de mim do que de meu advogado?
Dizem-me que é preciso acabar com isso; que é impossível que eu me ocupe com tantos interesses diversos; que afinal de contas um conselho de árbitros, cujos membros teriam sido nomeados por todas as vozes do povo, promete uma aproximação da verdade e do direito bem superior à justiça de uma monarca irresponsável, representados por ministros insolentes, e magistrados cuja inamovibilidade mantém-se, como o príncipe, fora de minha esfera.
Primeiro, não vejo absolutamente a necessidade de se decidir a este preço: não vejo, sobretudo, que algo seja decidido. Nem a eleição nem o voto, mesmo unânimes, resolvem algo. Depois, há sessenta anos nós praticamos uma e outro em todos os graus, e que decidimos? O que nós somente definimos? Que luz o povo obteve de suas assembléias? Quais as garantias conquistadas? Quando se lhe fizer reiterar, dez vezes ao ano, seu mandato, renovar todos os meses seus oficiais municipais e seus juízes, isto acrescentará um cêntimo à sua renda? Estaria mais seguro, ao se deitar em cada dia, de ter no dia seguinte o que comer e do que sustentar seus filhos? Poderia somente responder que não se virá prendê-lo, arrastá-lo à prisão?
Compreendo que sobre questões que não são suscetíveis de uma solução regular, para interesses medíocres, incidentes sem importância, se submeta a uma decisão arbitral. Semelhantes transações têm isto de moral, de consolador, pois elas atestam nas almas alguma coisa de superior até mesmo à justiça, o sentimento fraternal. Mas sobre princípios, sobre a própria essência dos direitos, sobre a direção a imprimir à sociedade; mas sobre a organização das forças industriais; mas sobre meu trabalho, minha subsistência, minha vida; mas sobre esta hipótese até do governo que nós agitamos, recuso qualquer autoridade presuntiva, qualquer solução indireta; não reconheço nenhum conclave; quero tratar diretamente, individualmente, por mim mesmo; o sufrágio universal é, a meus olhos, uma verdadeira loteria.



* Publicado na edição de Janeiro/Fevereiro de 2009 do jornal O Libertário, informativo do PAEM.